Vida Além da Vida

de Clério de Souza Oliveira

 

Capítulo 1

 

Revelação

 _ Como vai?

 _ Eu vou bem, e você?

 _ Na mesma, esperando.

 _ Eu também, como todos aqui.

 _ A situação está difícil, não há mais oportunidade, e aquelas que surgem é melhor fugir.

 _ Alguns se desesperam e vão assim mesmo.

 _ É! E você sabe no que dá. Amigo, eu não caio mais nessa. Para mim tem que ser uma oportunidade de ouro. Vou para conseguir o que pretendo, ou melhor, ter mais chance de conseguir.

 _ Soube do Armando?

_ Não. O que foi?

_ Ele se desesperou, tentou, parecia que teria uma chance, ia ser uma oportunidade de ouro, era luta para ir adiante, mas houve interferência. Eles não querem e não deixam os outros tentarem. Criaram tanta dificuldade que houve uma interrupção que ninguém esperava. Agora, o coitado está por lá, curtindo aquele estado, que até me dá arrepios. Não criou raiva não, seria até burrice, ele sabia o que podia ocorrer, mas de desespero passou a angústia, e que angústia. Deve amargar por lá um bom tempo. Muitos estão tentando ajudá-lo, mas ele não quer.

 _ Amigo, por isso que eu tento não me desesperar. Há de chegar a minha chance.

 _ Como foi sua última? Se é que você não se importa de falar sobre isso.

_ Tudo bem! Não me importo, não tem muita novidade. Foi como a maioria, sempre é como a maioria. A gente sempre pensa que a maioria está certa e vê no que dá.

 A família era boa, eu mais dois irmãos, todos homens. Meu pai foi o Ricardo. Lembra? Aquele que eu atrasei a vida, pois então, foi para isso que fui, queria resolver, voltar às boas. Isso eu consegui. Éramos muito unidos, ele foi legal, tinha muitas dificuldades de dinheiro, mas não desanimava. Eu era bonito, me achava o maior galã, tipo de novela. Aproveitei-me disto, namorei muitas, desgracei algumas. Até que reencontrei a Adriana, caí de quatro. Ela era linda, eu me encantei, fiz de tudo, novamente me precipitei, busquei ser dono dela, achei que a possuía. Casei de acordo como manda o figurino, com festa, champanhe e tudo. Ela ficou grávida logo de começo, ficamos chateados, queríamos curtir, queríamos nos sentir mais... Desculpe! Deixa eu me controlar. Eu achava que já tinha superado... Bem, vamos adiante resolvemos tirar a chance do pobre coitado, ele era pendência dela, e agora é minha também. Como consequência a coisa descambou, como sempre, carregar nas costas a culpa, mas se afirmando que era o melhor a fazer, cheio de razão. Como sou idiota! Mas a maioria faz isto, não é? E a maioria acaba na mesma desgraça.

 Após um ano de chove não molha, o desinteresse foi aumentando, um fugia do outro, parecia que o outro era um espelho e não conseguíamos olhar para nós mesmos. Ela se interessou por um colega de trabalho, acabou levando ele para a nossa casa. Ela queria que eu os pegasse, era uma forma de vingança e de me afastar definitivamente. Nós ainda nos gostamos muito. Não a reencontrei, nem sei se ela já veio para cá. Mas se Deus quiser ainda vamos estar juntos. Sabe como? Nós somos uma coisa só. Eu sei que ela também pensa assim. Mas voltando, tudo aconteceu como nos filmes, peguei eles, fiz aquele drama. Não fui além, só sai de casa, bebi muito, prejudicando mais gente ainda. Resolvemos tudo pelos advogados, não a vi mais, ela se mudou, não sei se casou de novo. Bem, continuei aquela vida. Passei a freqüentar tudo que era lugar cheio de iguais a mim, bebia muito. Casei de novo, mas agora foi um casamento de medo, medo da solidão, já estava com mais de quarenta. Ela era divorciada, cheia de remorsos, fumava que nem uma chaminé. Agüentei, eu merecia, discutíamos, mas nos agüentávamos, precisávamos um do outro, vivíamos na mesma casa, dividíamos a mesma cama, mas tínhamos vidas separadas.

 Aposentei. Sem filhos, fiquei sem ter o que fazer, a bebida não mais me atendia, aqueles lugares não mais me atraíam. Creio que minha cruz fez com que eu fosse tomando jeito. Cruz que eu mesmo entalhei, de madeira bem pesada, com bastantes pontas de prego aparecendo. Sabe como é? Aquela cruz para ninguém botar defeito.

 Um belo dia, ou melhor, uma bela noite estava passeando, sem ter aonde ir, só sentindo o frescor de uma noite de verão, eu passei em frente a uma casa, que tinha um monte de gente entrando, era um destes centros espíritas. Eu nunca fui de igreja, minha família não era muito chegada a rezar. Eu sabia, como a maioria, rezar o Pai-nosso. Eu fui batizado na igreja católica, como era de praxe Casei numa também, mas creio que se entrei umas dez vezes, é muito. Normalmente para batizados, casamentos de amigos ou parentes, acompanhar namorada na noite de Natal, coisas assim. Mas como não estava fazendo nada, como também era um nada em pessoa, entrei. Não gostei muito da multidão, mas fiquei interessado pelas obras. Eles precisavam de pessoas que quisessem ajudar em hospitais, asilos, preparar e distribuir comida para pobres, coisas deste tipo. Como era uma coisa livre, sem obrigações, comecei a participar; com nada ali tinha pessoas para conversar, não estavam embriagados; não ficavam falando junto do seu nariz, fedendo, Eles tinham papos mais alegres, não ficavam se lamentando de cicrana que foi embora, ou que deu o fora, do time que perdeu, da falta de dinheiro, do patrão que pegava no pé; dava condições de fazer novas amizades. O ar ali era leve, e nós bem sabemos, agora, como era o ar que eu frequentava, achando que estava por mim mesmo, dono do meu nariz. Como sou idiota!

 Ficando por ali, diariamente, comecei a ouvir certas verdades, passei a entender todas as idiotices que havia cometido. Mas como consertar o malfeito como voltar atrás sem aumentar mais ainda as minhas pendências. Não havia jeito, ou melhor, o jeito era bola pra frente. Passei a rezar mais fazia meu trabalho. Tentei levar minha mulher para lá, mas ela não quis, achava que era tudo bobagem. Ela estava satisfeita com as reuniões dela com as amigas, aonde fofocavam, bebiam cerveja e fumavam; ou então de fazer compras. Creio que isto a deixava mais bêbeda do que a própria bebida. Ela entrava em euforia quando saía o pagamento, arrumava-se toda, pegava alguma amiga pelo braço e lá ia ela pelos shoppings da vida.

 Não pude fazer muito por ela, mas aceitei, não discutia mais, deixava ela viver e vivia. No centro ia bem, participava das reuniões evangelizadoras, tentava participar de tudo que era possível, mas eu sei bem que não era por amor ao próximo, era na verdade para saciar a minha sede, era para ficar bêbado, mas agora de outra maneira, pela ocupação. Isso. Era isso mesmo, me ocupando eu esquecia da minha vida, da minha perda de tempo. Você pensa que isto me aliviava, que nada, quanto mais eu lia, quanto mais eu estudava e ouvia, mais eu sabia como tinha sido um idiota, ou melhor, como sou um idiota. Mas valeu, valeu para me arrepender, valeu para que eu reconhecesse a minha ignorância: e também valeu demais na hora de vir para cá. Isso eu não paro de agradecer, graças a esta entrada como quem não quer nada, naquele centro, escapei de ficar muito tempo amargando meus erros naquela escuridão. Mas não vou me adiantar eu ainda estava com sessenta anos quando minha mulher caiu doente, de câncer no pulmão. Os cigarros mostraram os seus resultado. Ela não durou muito, logo logo, saiu de lá. Também não sei dela, onde está, como está.

 Toquei minha vida, passei a estar mais no centro, a ler mais, a rezar mais, a solidão, graças a Deus, não me pesou tanto, eu quase não a sentia. Chegava em casa cansado, caía no sono logo.

 Eu me tornei um dos dirigentes do centro, mas não tinha desenvolvido mediunidade alguma, fingia às vezes, como a maioria, mas evitava prejudicar quem quer que seja. Tinha que fingir porque as pessoas esperavam que aquele senhor, cheio de cabelos brancos, de ar distinto, devia ser um iluminado, devia conversar com Deus, cara a cara. Coitados, se soubessem. A máscara do corpo engana demais. Eu tentava me concentrar, colocava os dedos na testa, fechava os olhos, mas não vinha nada. Falava, falava, falava, seguia as palavras que tinha lido em vários livros. Bem, acho que não prejudiquei a ninguém com isto, a não ser a mim mesmo, ajuntando mais um pouco de orgulho, mas embaixo da minha máscara sabia que não era nada, sabia que meus cabelos brancos eram a minha coleção de erros. Mas quem sabe se tive a sorte de ser usado para dar jeito, de verdade, na vida de alguém.

 Fui levando assim até ficar fraco, parar numa cama de hospital, mas tinha alguns poucos, mas bons amigos que me visitavam. Saí de lá, caí na escuridão, nem sei por quanto tempo, mas tinha aprendido a rezar e me vali disto, logo fui socorrido e vim para cá.

 Ainda me pesa as saudades, as pendências, aqui elas são mais presentes, mais doloridas, são como uma ferida que não sara nunca, por isso anseio pela minha nova chance, rezo e imploro todo momento por isto.

 _ Todos nós, meu amigo. Mas você, recentemente, tentou reencontrá-la.

 _ Quem?

 _ Adriana.

 _ Sim, mas parece que ela ainda não veio para cá. Falaram-me que para o meu bem e o dela, eu devia ter mais paciência.

 _ E quanto aquele filho? Sabe quem é?

 _ Não, não sei ainda, mas dizem que eu ainda vou conhecer. Não me deram detalhes, apesar de eu insistir.

 _ Depois que você chegou aqui, participou de algum estudo?

 _ Claro, agora não paro mais. Sei que o conhecimento é fundamental, devo estar preparado para a próxima oportunidade. Meu amigo, não posso desperdiçar esta chance. E quem sabe se eu a reencontro, e dessa vez acerto. Sei que o esquecimento, no retorno, é benéfico, sei que seria difícil enfrentar nova luta com os remorsos anteriores, mas que Deus me ajude, eu quero esbarrar de novo com ela e espero estar diferente, correto, responsável, em resumo, deixar de ser idiota, dar valor ao que realmente interessa, a família, o ajudar aos outros, o amar, e não me deixar levar pela maioria.

 Mas eu falei de mim, e você nada. Importa-se de contar?

 _ Meu amigo, eu não me importo, mas não sei se ainda é o momento certo.

 _ Como assim?

 _ Bem, como o acaso não existe e nem a coincidência, eu acho que estamos conversando por alguma razão, então vou te contar.

 _ Vamos, fale logo, agora você me deixou curioso.

 _ Há muito tempo atrás, eu, numa destas oportunidades que desperdiçamos, fiz uma besteira das grandes.

 

Eu era daqueles que não dava valor a casa, à família, a ninguém. Gostava era de jogar minha bola, beber cerveja com os colegas, assistir o jogo no bar. Tive três filhos, dois meninos e uma menina, crianças lindas. Mas as deixava por conta da mulher, sua criação; achava que isto não era assunto de homem.

 A título de me sentir mais homem, tinha meus casos por fora, ficava todo orgulhoso de atrair as mulheres, de ser considerado o machão. Já aquela a quem deveria me dedicar, desprezava, tratava como se fosse minha empregada.

 As crianças cresceram, ficaram adultos, buscaram sair de casa o mais rápido possível. Lógico, eu não tinha criado um lar, só forneci um teto, frio, sem amor. Minha esposa, ao ficar só, e não tendo mais a carga de trabalho de cuidar de outros, logo após o casamento de minha filha, separou-se de mim e foi morar com meu filho mais velho.

 Você acha que eu aceitei a situação? Que eu tenha enfiado a carapuça e reconhecido os meus erros? Nada disso, eu me considerei ofendido, desconsiderado. Os colegas de bar me apoiaram, diziam que eu deveria dar uma lição na ingrata, que eu tinha sido um bom marido, que nunca deixei faltar nada em casa, que se ela estava forte, bem nutrida, era por minha causa, que trabalhava feito um condenado. Falaram tanto, que cada vez mais eu ia me convencendo de que aquilo tudo era verdade. Pensava que eu tinha direito ao divertimento, pois aquele que trabalha precisa descansar, que se eu saía com outras mulheres era culpa dela, pois sempre estava mal arrumada, cheirando a cebola e alho. Quando íamos para cama ela desmaiava, não sabia porque ela se cansava tanto, se eu que trabalhava o dia inteiro, estava sempre pronto e firme para tudo. Ela não se cuidava, os cabelos estavam sempre esquisitos. Enquanto isso, as que eu encontrava fora de casa estavam sempre arrumadas, cheirosas, mesmo não sendo tão bonitas como a minha esposa, principalmente como era quando casei com ela, mas estavam sempre prontas para tudo. Gostavam de acompanhar na cerveja, no churrasquinho.

 Fui remoendo todas estas bobagens, fui fantasiando a situação, meu orgulho ferido. Passei a rondar em volta da casa de meu filho, até que um dia a vi sair, estava linda, bem arrumada, cabelo cortado e penteado como ela usava na época do nosso namoro Aí, meu caro, acha que eu me arrependi, que eu tenha tentado retornar para ela e pedir perdão? Não, eu no meu orgulho nunca admitiria fazer isso. Passei a segui-la, ver o que ela fazia. Um dia eu a vi junto com outros homens e mulheres, era final do ano, ela abraçava a todos e era abraçada, beijava e era beijada. Não consegui enxergar mais nada, o sangue pintava minha visão de vermelho. Entrei no carro e fui até uma rua transversal, pela qual eu já a tinha visto passar ao voltar para casa. Era início de noite, quando ela foi atravessar a rua em que eu estava, acelerei, batendo nela em cheio, fazendo-a voar por cima do meu carro, e depois fugi. Olhei pelo espelho retrovisor e ela estava caída, não havia mais ninguém nos arredores. A rua era mal iluminada e a noite encobriu meu crime. Fui para casa e bebi até desmaiar. Fui acordado pelo telefone, meu filho mais velho me informava que sua mãe estava morta que tinha sido atropelada. Ninguém viu nada. Fui ao enterro ouvi os comentários e agi como se não tivesse nada com aquilo. Fiquei sabendo que ela estava participando de um grupo de oração, que naquele fim de tarde tinham se cumprimentado pelo Natal.

 Passei a sufocar a minha culpa com a bebida. As imagens daquele crime voltavam, constantemente à minha vista e bebia, bebia cada vez mais, até que um dia, depois que havia me encharcado de bebida, dirigindo meu carro pela estrada, acabei derrapando em uma curva, vindo a cair em um precipício e incendiando. Amarguei muito tempo na escuridão, sentindo muitas dores pelo corpo todo, as queimaduras ardiam e a visão do crime me deixava maluco. Não tinha o menor preparo, servi de alimento para outros e depois aprendi a me alimentar da energia daqueles que ficavam no mesmo bar que freqüentava.

 Depois de longo tempo consegui a oportunidade de ser o filho daquela que assassinei, seria a chance de dar o amor que não soube dar como marido. Mas meus pais não me quiseram, fui retirado na terceira semana. Não culpei a eles, sei que mereci.

 _ Não me diga que você era para ter sido meu filho?

 _ Teria sido uma grande honra para mim.

 _ Me perdoe meu amigo. Eu não sei nem o que dizer.

 _ Não precisa dizer nada, como eu disse, mereci.

_ Ninguém merece isto. É um assassinato.

 _ Como o que eu cometi.

 _ Eu considero, agora, pior. Ela pode aproveitar parte da oportunidade, mas você, eu não deixei ter nem o início. Você tem o direito de me odiar.

 _ Não, eu não odeio nem a você e nem a ela. Rezo é para ter a oportunidade de fazer alguma coisa para a felicidade dela, e a sua também.

 _ Meu amigo, antes eu só pensava em encontrar aquela que amo, mas agora eu quero também te devolver a chance que lhe tirei. Mais outra razão para rezar, implorar a Deus por uma nova oportunidade de vida.

 _ Veja como nós damos importância ao que não interessa; nomes, temos vários; aparência, se modifica sem o nosso controle; riqueza, só serve por um tempo bem pequeno; liberdade, não é o que nós imaginamos; posição social, como o dinheiro, vem e vai; no entanto o sentimento que deve existir para todos, pois temos nosso destino entrelaçado, este desprezamos, e é a única coisa que perdura, tão eterno como nós.

 _ Sim, é isso aí. Agora o problema é educar-nos de tal maneira que no campo da luta nos lembremos disto, sem nos importar para a opinião da sociedade, dos outros.

 _ Mas, apesar do nome não ser importante, o meu é Roberto e eu sei que o seu é Paulo. Muito prazer, meu amigo, mas agora tenho que ir.

_ O prazer é todo meu. Até a próxima.

 

* * *

Capítulo 2